10 agosto, 2013

da Terra

Sebastião Salgado, Génesis
© Sebastião Salgado/Amazonas images

Sebastião Salgado
Viagem aos lugares velhos da Terra
(Revista 2, 21.07.2013)

O difícil na fotografia de Sebastião Salgado é não ficar impressionado. Há muito que a estratégia visual de um dos mais reputados fotógrafos vivos joga com a escala. E essa dimensão agigantada (vasta, de cortar a respiração...) não está apenas naquilo que se passa dentro das suas imagens (acusam-nas de uma visualidade demasiado cinematográfica, grandiloquente...), mas sobretudo na atitude com que pratica o ofício, no tempo que lhe dedica, na ambição de ir longe, aonde poucos ou nenhuns foram, a lugares onde não há asfalto, mas onde há caminhos de terra batida por humanos ao longo de milhares de anos de história.

Desta vez, que é como quem diz ao longo de oito anos (2004-2011), Salgado quis dar imagem fotográfica ao começo de tudo, aos "lugares prístinos [anteriores, antigos, velhos] da Terra", na tentativa de demonstrar que ainda existe "um planeta puro, grande e majestoso". Percorreu montanhas, desertos e oceanos a bordo de tudo o que mexe nos quatro cantos do mundo. Aproximou-se de animais e embrenhou-se em paisagens que ficaram, até agora, à margem do desenvolvimento das sociedades modernas.

A viagem a esses lugares (32 grandes ensaios em outros tantos países) não exclui o Homem - pelo contrário, procura-o, mas apenas quando vive em comunhão com a natureza ou numa relação de equilíbrio com o meio que o rodeia. Para o fotógrafo, o resultado desta jornada é uma longa "carta de amor ao planeta", uma portentosa e exigente empreitada fotográfica que dificilmente poderia ter outro nome que não Génesis (da raiz grega "nascimento", "origem", o primeiro livro da Escritura, aquele em que se narra a criação do mundo).

A concretização deste projecto inscreve no extenso currículo de Sebastião Salgado (Aimorés, 1944) mais um ensaio com características épicas, depois do reconhecimento global obtido com Trabalhadores (1993), que documentou em todo o mundo os sinais do desaparecimento de um modo de vida baseado na manufactura, e Migrações (2000), registo das deslocações em massa de pessoas, forçadas pela fome, desastres naturais, condições ambientais degradadas ou pressão demográfica.

Para quem, como Salgado, se foi habituando a jornadas fotográficas de grande arcaboiço, o tempo vai deixando de contar ou, pelo menos, vai encontrando outras formas de ser contado. "Oito anos passam tão depressa! Mas tive o privilégio de ver os mais incríveis lugares do planeta e descobrir que dois terços da Terra são prístinos, estão como no Génesis." Este deslumbramento de Sebastião Salgado para com lugares que ainda permanecem intocáveis transparece de maneira óbvia nas fotografias seleccionadas para Génesis. Mas há também um fotógrafo renascido e duplamente entusiasmado com o culminar de um trabalho que talvez fique como a sua epopeia. Depois de Migrações, Salgado ponderou abandonar a fotografia, chocado com as condições de vida de muitos povos e com o número de mortes que viu à sua frente, especialmente no Ruanda. Nessa altura, ficou zangado não só com o mundo, mas também com a fotografia. De volta ao Brasil no início do novo milénio para se recompor física e psicologicamente, decidiu, por sugestão da sua mulher Lélia, recuperar a fazenda da família no vale do Rio Doce, Minas Gerais, começando por replantar árvores da floresta tropical que quase tinham desaparecido em seu redor. À medida que o projecto de preservação e recuperação ambiental foi crescendo (até hoje já foram plantadas mais de 2 milhões de árvores pelo Instituto Terra, gerido por Sebastião e Lélia), a vontade de fotografar regressou. Foi então que surgiu a ideia de Génesis, uma tentativa de viajar no tempo e uma carta visual a gerações vindouras, onde entre outros alertas está a certeza de que a natureza e a humanidade jamais se poderão separar.

"Com a veloz urbanização dos últimos cem anos, perdemos o contacto com o indómito, a fauna e a flora que representam a essência da vida na Terra", escreve Salgado no texto de apresentação do seu novo livro, confessando que, no início do projecto, havia mais vontade de concretizar fotografias que fizessem denúncias pela forma como estamos a abusar do planeta. No entanto, a renovação da natureza a que foi assistindo na Fazenda Bulcão fizeram-no alterar a trajectória rumo a uma abordagem mais "romântica", longe de qualquer cunho jornalístico, científico ou antropológico.

"Chamamos Génesis ao nosso projecto porque sonhamos atrasar o relógio até às erupções vulcânicas e aos sismos que deram forma à Terra. (...) Queria estudar a forma como a Humanidade e a natureza coexistiram durante tanto tempo naquilo a que hoje chamamos "equilíbrio ecológico"." A par do entusiasmo com o poder que as suas imagens podem ter na alteração de atitudes e consciências, com Génesis, Sebastião Salgado voltou a ter prazer no acto fotográfico. E a praticá-lo na sua máxima intensidade. "Fotografar é um prazer enorme (...) Andei em caminhos que foram sulcados há 3000 ou há 5000 mil anos. Quando se anda nestes lugares, recebe-se muita energia do passado."

Convidado para uma apresentação nas populares TED Talks (conferências curtas gravadas em vídeo), no início de Junho, o fotógrafo brasileiro deixou vários recados ambientalistas a partir das suas imagens mais recentes e afirmou que com Génesis quer potenciar "uma discussão sobre o que é que queremos fazer com o planeta". "Quero que estas imagens se tornem um sistema de informação, que possam ser uma nova apresentação da Terra", pediu emocionado.

Quando o patrão da Taschen, Benedickt foi ter com Salgado para lhe propor um livro que fizesse a retrospectiva de quatro décadas de trabalho (que se cumprem este ano), o fotógrafo brasileiro vacilou e acabou por negar o desafio. Justificou-se afirmando que os rostos que fotografou no passado tinham o seu lugar e o seu contexto e que deviam ficar como estão - não queria que figurassem num "livro de arte".

Em contrapartida, propôs-lhe o resultado de Génesis (que terminou no Pantanal, no final de 2011). Benedickt aceitou e pôs mãos à obra com a ambição de fazer um livro que "será não apenas uma referência na fotografia, como também na edição de fotolivros".

Para já - e para não destoar da escala do fotógrafo -, as escalas escolhidas pelo editor de Colónia impressionam: uma edição especial de 2500 cópias (46,8x70cm) assinadas por Salgado, com mais de 700 páginas (divididas por dois volumes), com um expositor em madeira de cerejeira concebido pelo consagrado arquitecto japonês Tadao Ando (3000 euros); uma edição de arte de 500 cópias (46,8x70 cm), com tudo da edição especial, mais uma fotografia original (8500 euros); e por fim uma edição com mais de 500 páginas (24,3x35,5) a um preço (muito) mais acessível (49,99 euros), que já está disponível em português.

Todos os livros foram concebidos e desenhados por Lélia Wanick Salgado, inseparável companheira de vida e de trabalho de Sebastião. E todos estão divididos em cinco partes: Os confins do Sul; Santuários; África; As terras do Norte; A Amazónia e o Pantanal.

Para Sebastião Salgado, a grande proeza de Lélia foi ter conseguido conceber os livros "como uma árvore", onde muitos ramos incluem fotografias impressas em páginas duplas, "de maneira a que se possa conviver com cada imagem um dia inteiro".

Para além das edições em livro, o projecto de Génesis inclui várias exposições em todo o mundo (para já, não está prevista nenhuma data para Portugal). A inauguração aconteceu no Museu de História Natural, em Londres (até 8 de Setembro), mas pode ser vista em simultâneo noutras cidades, como Ontário, Roma e Rio de Janeiro. Com data prevista de lançamento para Setembro, o documentário Sombra e Luz revelará mais detalhes do projecto. A longa-metragem terá a assinatura de Wim Wenders e de Juliano Ribeiro Salgado, filho de Sebastião Salgado que acompanhou o pai em muitas das suas viagens pelo mundo inteiro.

Quando alguém concretiza um projecto com esta dimensão, corre o risco de olhar para lá dele e não ser capaz de ver mais nada. Numa passagem por Lisboa, há quatro anos, perguntámos a Sebastião Salgado:

- E depois de Génesis?

- Não sei. Se ainda estiver vivo, vou pensar em outra coisa.




Sebastião Salgado, Génesis
© Sebastião Salgado/Amazonas images

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